Em julho de 1982, o estudante de história Fernando de Mello entrevistou Mariano dos Santos, ex-escravo nascido entre 1870 e 1880 que, alegre e gentilmente, falou de seu passado. O depoimento é muito importante, pois revela que os escravos brasileiros tinham um código lingüístico próprio, além de preciosas informações para uma melhor compreensão do escravismo colonial. Aqui está um pequeno trecho da entrevista:
E: E o feitor batia, sem mais nem menos?
M: Batia! E ali não tinha, não podia parar. Então, é o que eu conto: rançando raiz de pinheiro, raiz de madeira, arando terra, cultivando. E se fosse madeirinha fina, cada madeira! Que agora só no sertão que tem. Caviúna, ipê, aquele pau-de-alho, alequim, chifre-de-carnero, madeira que prestasse, dava pra fazer um cabo de machado… Não tinha o que não tivesse naquele mato. O roçador que dissesse, hoje, “eu tiro doze e meia”, não tirava. Não tirava nem a metade. (…) Tirando duas, três por maçada. Cortando a madeirada dura – que agora não tem pra qui – tirava a metade de doze e meia. Podia ser o roçador que fosse! E naquele tempo ninguém trabaiava pra si. Trabaiava só pra eles. Pros feitores, pros chefes. (…) Trabaiava pra comida. Pra comida que comia e era assim que se trabaiava.
E tinha que trabaiá… Os que não agüentavam mais de idade eles pinchavam (colocavam) num paiolzinho veio. Daí, a comida era por semana. Se comesse tudo antes de entrá a outra semana… E reclamasse pra ver… Porque eles faziam o que queriam.
E: Os escravos tinham muita raiva do feitor, do senhor?
M: Pois é. Tinha, porque era sofrimento. Tava passando fome, trabaiando diariamente, os dia todinho. Até pra comê era de pé. Não tinha descanso. Então, e se ele o feitor soubesse que qualquer um reclamou, eles mandavam pegar, argemado e amarrado no meio do terrero – que lês diziam tronco… E ficava o dia, tivesse frio, tivesse garoa de vento do mar, sol. Ficavam amarrado o dia todinho. E se não se aquebrantasse, pousava (dormia), amarrado, argemado, oco. Se garrava o mar (fugisse), porque não agüentava a judiaria – saía. E vinham de tráis, com a faca bem apontada, furavam as solas dos pés. Ficava que a mesma coisa que a pessoa tá descalça, pisando numa touceira de espinho, tudo aonde catuca aqueles espinhos dói. Então, ficava com os pés patinhando…
E no tempo dos escravos, e depois dos escravos, da escravidão mesmo, inda passei fome. Porque, depois da libertação, nóis saímo. Saímo sem nada – sem recurso, só com a roupa do corpo.