Café...tudo de bom!

4.3.16

O Feijão e o Sonho


Certa ocasião em que Maria reverberava a inépcia do marido, o fracasso da escola, a deserção dos alunos – “daqui a pouco você vai dar aulas só para as carteiras” – ele atalhou, triunfante:
– Não, Rosinha, amanhã mesmo eu tenho dois alunos novos…

– Quem?

– O Panfílio e o Empédocles.

– Os filhos do Oficial?

– Sim.

– Ainda bem.

– Você vê que não tem razão de falar. É preciso ir com calma. Esta gente ainda não sabe dar valor à instrução. Pensa que estudo só serve para atrapalhar…

– Hum! Eu não sei se eles não estão com a razão…

– Ora, Rosinha, você já começa com as suas! Você sabe que a nossa desgraça é justamente o analfabetismo, a incultura…

– Não sei, não. O que é que você ganhou com tanta leitura, com tanto livro, com tanta bobagem? Não dá nem pra pagar o feijão…

– Isso é uma questão de sorte. Quem sabe até se o culpado não sou eu…Mas as coisas mudarão, com o tempo, esteja certa.

– Olhe, Juca, francamente! Se perder tempo em estudo, em remexer biblioteca, só serve para fazer gente como você, eu prefiro que os meus filhos cresçam bem burros, mas que prestem pelo menos para trabalhar num armazém, pra vender amendoim ou pipoca, contanto que ganhem o suficiente pra viver. Antes um burro bem alimentado que um poeta com fome! Deus me livre de ver um dia Joãzinho passando as vergonhas que você tem passado…

– Mas não é vergonha…

– O quê? Não é vergonha? É porque você não tem. Então isto é vida que se viva? Devendo a todo mundo, sendo expulso de casa por falta de pagamento, passando toda sorte de humilhações, desmoralizado em toda parte? Ouça bem: se algum dia eu descobrir você querendo estragar o Joãozinho – felizmente ele ainda é muito criança, não entende essas coisas – eu digo com toda a franqueza: eu pego a criançada toda e saio de casa. Prefiro viver de esmola, prefiro ver o meu filho trabalhando num açougue ou como entregador de farmácia, mas que saia um homem…Deus me livre de ter mais um poeta em casa…

– Mas você acha que poeta é humilhação, é vergonha?

– Eu não sei. Pode ser coisa muito bonita. Mas eu nunca ouvi falar de ninguém que conseguisse ganhar dinheiro, sustentar a família com versos…

E jogando a erudição que as palestras literárias, ouvidas ao acaso das misérias do lar, lhe haviam trazido:

– Foi sempre assim em todos os tempos. Até Camões você não disse que morreu de fome, que vivia de esmola?

– Mais isso é um caso excepciona! E mesmo que morresse na miséria. Não fez ele Os Lusíadas, não ganhou um nome imortal? Não viverá ainda daqui a mil, a dois mil anos, a cem mil? E quem foi que ficou dos homens ricos do seu tempo, dos nobres, dos fidalgos, dos negociantes? Quem é que se lembra deles? Sabe-se que Camões pediu esmola. Você sabe quem deu esmola a Camões?

Maria Rosa sorriu.

– Mas quem deu esmola, saiba-se ou não o nome, tinha pra dar. Tinha dinheiro no bolso, tinha comida em casa, podia comprar feijão, farinha de mandioca…

– Não se usava, naquele tempo…

– Usasse ou não! Mandioca ou pepino, ou tomates! Mas comida, compreende? […] Garanto que ele preferia em vida, um bom pão com manteiga…Você prefere passar uma semana sem comer, mas ter os seus livros daqui a mil anos analisados nas escolas?

– Analisados na escolas, nunca. Mas lidos, mas amados, sem dúvida!

Ela se aproximou irritada:

– É por isso que você não dá coisa nenhuma. E é por isso que, no primeiro dia que o Joãozinho aparecer com um soneto, ele entra numa surra que você nem pode fazer idéia! E não é só fome, meu caro, é peso! Poesia dá peso!

– Ora, Rosinha…

– O quê? Não dá peso? Tudo quanto é escritor que eu conheço é pé-rapado. Eu nunca vi gente mais azarada…Uns prontos, uns vagabundos…

E voltando à erudição fácil que o casamento lhe trouxera:

– Pela sua conversa, mesmo, a gente pode fazer ideia. Tudo morrendo tuberculoso, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Casimiro de Abreu, o tal Leopardi*. Uns aleijados, outros epiléticos, uma cambada sem jeito, que até da medo na gente. O tal Dante andava na cadeia, sendo expulso da cidade em que morava. Esse do Dom Quixote diz que andava sempre no xilindró, ou passando fome. O tal de Verlaine era bêbedo. Você viu como acabou o Oscar Wilde. Os tais russos andam sempre no pau. 

O B. Lopes está no hospício. O tal filósofo alemão também**. Aquele poeta grego era cego***. O inglês era capenga…

– Byron?

– Deve ser. Tinha um outro que era corcunda.

– Pope?

– Sei lá se era Pope? […]

O marido riu.

– Não. Não ria. É a pura verdade. Só falam em princesas e palácios, mas não têm cotação nem no albergue noturno. Esse tal, que você admira muito, Dosto…Dosto não sei o quê.

– Dostoiévski…

– Quero lá saber o nome dele! Um sujeito que vive da cadeia pro hospital, um jogador, um desorganizado, que até nos livros conta as poucas-vergonhas que fez ou que ouviu. É tudo uma turma assim. E você acha muito bonito que o seu filho acabe nessa companhia?…

Olhou desta vez o marido com crueldade:

– E até no amor! Até no amor eles são uns pesados! Você já viu poeta que não vivesse chorando e se lastimando, porque mulher não liga, não dá licença?

O argumento era esmagador. Maria Rosa estava satisfeita. Ia correr à cozinha para pôr mais água no feijão. Súbito, uma ideia lhe ocorreu.

– Ah! escute: me diga uma coisa. Os filhos do Oficial pagam?

Campos Lara gaguejou.

– Pagam?

– Ele é pobre, você bem sabe. Não tem recursos…

– Ah! Não pagam? Pois olhe: aqui eles não entram! Se quiser, vá dar aulas na casa deles. Na escola eles não entram, pode ficar descansado!

E foi ver o feijão-mulatinho, quase queimando na panela velha.


Orígenes Lessa, 

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